domingo, 24 de julho de 2011

APARELHOS E CONSEQUÊNCIAS


Almir Dutton (1932-2005) foi um médico notável por sua generosidade e bom humor que podem ser confirmados por qualquer pessoa que o tenha conhecido, que foram muitas por esse mundo afora. Militante de esquerda desde a juventude, Almir era hóspede dos porões da ditadura militar, em 1971, quando teve seu nome incluído entre os presos que seriam trocados pelo embaixador da Alemanha Ehrenfried von Holleben, sequestrado pelo movimento Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Tal como os outros presos trocados por diplomatas, Almir perdeu a nacionalidade brasileira e andou pelo mundo afora com um passaporte fornecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) na condição de apátrida.
Entre os feitos que levaram Almir à cadeia estava a cirurgia plástica para alterar o rosto de Carlos Lamarca (1937-1971), capitão do Exército que desertara de suas funções para dedicar-se profissionalmente à luta revolucionária contra a ditadura militar naqueles anos 1960-70. Esta qualificação de Lamarca tornava-o pessoa procurada pelos órgãos da repressão — seu retrato, assim como os de outros militantes, estava espalhado pelo país —, era preciso protegê-lo para que continuasse a luta revolucionária. Assim, alterar seu rosto era fundamental para que ele pudesse, vez por outra apenas, transitar rapidamente pelas ruas sem ser imediatamente reconhecido.
Para realizar a cirurgia em Lamarca, Almir criou uma estrutura clandestina, com uma casa de saúde, médicos e enfermeiros, tudo com o maior sigilo e rigor. Depois, ele próprio retirou os pontos do rosto de Lamarca, já fora do aparelho criado. A questão principal aqui é a dessa relação entre ações motivadas por sentimentos e desejos tão legítimos, que não eram outros senão aqueles que levavam à busca pela superação da histórica injustiça social característica do país, e os caminhos utilizados na luta, que sempre envolviam a construção de estruturas, que na gíria das esquerdas ficaram conhecidas como aparelhos.
Esta pequena história é a da ação de um homem que foi notável pelos gestos de solidariedade a qualquer pessoa e do recurso que não podia deixar de usar naquelas condições: a criação de um aparelho. São inúmeras as histórias a respeito da lida com aparelhos pelos movimentos clandestinos, a maioria delas de grande dramaticidade. Surgiu até um novo verbo — aparelhar — para designar a ação de criação dessas estruturas. Se em alguns momentos o aparelhamento pode ser tido como uma ação legítima e justificável, sua prática tornou-se um grande problema por criar um modo de seus sujeitos se relacionarem com o mundo.
Os aparelhos parecem ganhar vida própria, tal como um câncer, através do desenvolvimento de disposições interiores de seus sujeitos para preservá-los. E com isto conforma-se o grande problema: o desenvolvimento de uma inclinação compartilhada coletivamente por alguns agrupamentos humanos para viverem apenas em aparelhos, auferindo vantagens pessoais deles, mesmo em condições das mais amplas liberdades democráticas.
*  Maurício Siaines é jornalist e mestre em sociologia

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