sábado, 22 de outubro de 2011

O FUTEBOL, A REPRESENTAÇÃO E A VIDA COMO ELA É

O romance Esaú e Jacó (1904), de Machado de Assis, conta a história de dois irmãos gêmeos ... mais do que isto: conta a história de um mundo do fim do império, de uma sociedade escravista, de privilégios nunca contestados. Os dois irmãos brigaram a vida inteira e, apesar de se oporem em todos os momentos de suas existências, os gêmeos Pedro e Paulo veneravam igualmente a mãe e apaixonaram-se ambos pela mesma Flora, que morre jovem no meio da história. Ou seja, seus afetos se voltam para os mesmos pontos. Além disso, usufruíam das mesmas vantagens que lhes conferia o fato de fazerem parte da elite do país.
Tive um professor que costumava afirmar não ser o amor a força capaz de unir os seres humanos, mas o ódio. Brincadeira ou não, isto é visível entre os seguidores de George Bush e de Osama Bin Laden: uns precisam dos outros a justificar-lhes as loucuras. Talvez seja melhor estarem os homens separados na reflexão de suas experiências do que unidos dessa maneira.
O antropólogo Roberto DaMatta, em O Globo da última quarta-feira, 19 de outubro, diz estar convencido de ser o futebol “uma das mais recorrentes metáforas da vida (e dos seus dilemas) tal como ela é idealizada entre nós”. Concordo com ele e tento levar essa relação um pouco adiante perguntando-me a respeito da relação entre o valor econômico produzido e sua expressão, o dinheiro. A característica essencial do dinheiro é o fato de expressar o valor produzido. Não fosse isto, ele nunca poderia ter sido meio de troca nem de entesouramento. E na atual crise mundial o problema está no dinheiro, isto é, na expressão do valor econômico, e não no potencial produtivo, embora este não se realize sem seu meio de expressão. Sendo impossível separar a produção econômica de sua expressão virtual, o dinheiro, é possível manipular a economia através da manipulação de sua expressão. E é o que parece ter levado à crise.
Se isto é verdade e se é também verdade ser o futebol uma expressão da vida e se de seus dilemas, não seria possível esta ser alterada pelo que acontece no primeiro? O comunista João Saldanha (1917-1990) e o conservador Nelson Rodrigues (1912-1980) frequentaram muitas vezes juntos mesas-redondas sobre futebol em programas de televisão nos anos 1960. Um e outro eram autênticos e tinham respeito recíproco. Diferentes dos personagens de Esaú e Jacó, Saldanha e Nelson não tinham nada a ligá-los, a não ser a autenticidade de suas opções opostas. Seria ela, essa autenticidade, a responsável pelo respeito? Personagens de um mesmo Rio de Janeiro, não precisavam da acomodação a uma situação privilegiada nem do oposto a odiar para partilharem os mesmos debates. Ou seria o futebol o responsável?
Mas existe um outro potencial humano a atrapalhar essa possibilidade de respeito apesar das diferenças: a intriga. Malba Tahan (1895-1974) conta uma pequena história sobre uma mulher que ensina ao diabo a usar essa arma para dominar a vida de uma comunidade humana que vivia em equilíbrio. E encerra a história dizendo: “O que o Demônio, com mil perversidades e embustes não consegue em vinte dias, a intriga realiza, com a maior segurança, em meia hora.”
E, a julgar pelo que se vê acontecer, a política, tão presente na vida humana, tem sido pura prática de intriga. Seria possível viver sem a política, ou usando-a da mesma maneira que João Saldanha e Nelson Rodrigues discutiam futebol?

- Maurício Siaine é jornalista e mestre em sociologia

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